As imunidades tributárias às instituições de interesse social e suas implicações éticas: breves anotações a partir de uma perspectiva constitucional garantista

José Márcio Maia Alves

Tanto formal como materialmente, os direitos fundamentais passaram por uma evolução histórica significativa ao longo dos séculos, cuja mutação de paradigmas sobre os quais se desenvolveram proporcionou-lhes um enorme ganho de eficácia sob o foco de um garantismo social às expensas do Estado. Contudo, essas conquistas não evitaram a presença de um insistente déficit de efetividade desses direitos, ora tocado sob o manto de uma abusiva discricionariedade, ora por políticas de contenção administrativa de gastos em áreas tidas como não-prioritárias pelo gestor público, ora evidenciado pela escassez de recursos públicos em contraposição à enorme demanda por direitos a prestação material.

Na segunda metade do século XVIII o ideário do Estado Liberal era a tônica da sociedade européia, sobretudo na França, berço da Revolução Industrial e da mudança de paradigma da sociedade moderna em que se impôs o rompimento da sociedade com o Estado Absolutista e em que não se respeitavam os direitos básicos do cidadão. O homem não tinha garantias de fruição da sua liberdade e precisava garantir esse status libertatis mediante a imposição de uma postura negativa do Estado com o objetivo de manter o seu status quo, longe de intervenções abusivas do poder que não se pautassem pela legalidade estrita e pelo respeito ao devido processo legal em que, igualmente, se garantisse o amplo direito de defesa e de contraditório.

Mas a sociedade precisava do Estado. Seria inútil desgarrar o homem mediante o pretexto de que precisava ser livre, se não lhe fosse garantido o direito de sobrevivência digna. A disseminação do ideal de ruptura Estado/Sociedade sob o argumento da liberdade efetiva servia à burguesia como pano de fundo para a abstenção do próprio Estado do provimento de necessidades básicas do cidadão que deveriam se agregar aos atributos da liberdade. Esse momento marcou o ocaso do Estado Liberal e fez exsurgir as bases do Estado Social sob o manto do clamor pelos direitos de igualdade que, às expensas do Estado, poderiam proporcionar a sobrevivência digna. Fixaram-se, então, como direitos sociais: saúde, educação, amparo à maternidade e à infância, direitos trabalhistas, emprego, moradia, segurança, dentre outros.

Mesmo com a crescente conscientização humana – já no Estado Democrático de Direito – acerca da promoção dos direitos de terceira geração, ou dimensão [direitos de solidariedade], o papel de garante do Estado continuou presente na maioria das Constituições, tendo sido imposto, portanto, como conquista imprescindível para a sedimentação do princípio da dignidade da pessoal humana.

No Brasil, a previsão constitucional dos direitos a prestação material, quase que integralmente previstos no art. 6° da Constituição Federal, que deveria desvelar-se na prática como pedra-de-toque à universalidade e eficiência do motor garantidor da dignidade humana, na verdade, revela-se meramente simbólica diante da enorme crise de efetividade desses direitos evidenciada no dia-a-dia dos brasileiros.

Talvez proporcionados por diretrizes neoliberais dissimuladas, esses espaços acabam sendo ocupados – e ainda bem que o são – por representações da sociedade civil e da iniciativa privada que se instituem com o intuito de promover bens e serviços de forma subsidiária ao Estado, voltando suas atividades para uma espécie de complementação de oferta de acessibilidade a direitos de segunda geração.

E importa notar que essas iniciativas não contam com o desprezo ou indiferença do Estado. Diferente disso, são incentivadas pelo Poder Público, v.g., na forma de isenções tributárias e percepções de recursos públicos ao “Terceiro Setor”. Mas o mais básico e garantido incentivo vem certamente da imposição constitucional ao próprio Estado, da “limitação ao poder de tributar” essas entidades no que tange ao patrimônio, renda e serviços. Falam-se aqui das imunidades tributárias constitucionais. Nos termos do art. 150, da Carta Magna, inserem-se no rol de beneficiados: partidos políticos, inclusive suas fundações, entidades sindicais dos trabalhadores, instituições de educação e de assistência social sem fins lucrativos, sempre atendidos os requisitos da lei.

Conceitualmente há doutrinadores que definem as imunidades como obstáculo decorrente da Constituição à incidência de regra jurídica de tributação. O que é imune não pode ser tributado. A imunidade impede que a lei defina como hipótese de incidência tributária aquilo que é imune. É limitação da competência tributária[1].

Na mesma linha de pensamento, outros afirmam que a imunidade tributária é um fenômeno de natureza constitucional. As normas constitucionais que, direta ou indiretamente, tratam do assunto fixam, por assim dizer, a incompetência das entidades tributantes para onerar, com exações, certas pessoas, seja em função de sua natureza jurídica, seja porque coligadas a determinados fatos, bens ou situações[2].

O que não destoa na academia é que a imunidade trata-se de uma limitação ao poder de tributar, sendo que para as reflexões que ora se propõe, interessa fixar, com SABO PAES, que são protegidas desse poder-dever somente determinadas entidades que ficam asseguradas da incidência dos impostos sobre o seu patrimônio, renda e serviços em razão de, no campo social e cívico, complementarem ou até substituírem a ação do próprio Estado[3].

Nessa esteira, vale pontuar o que a Constituição Federal[4] assevera quanto aos requisitos e limites do alcance das imunidades tributárias que interessam a este estudo: 1) os sujeitos de direitos serão os partidos políticos, inclusive suas fundações, as entidades sindicais de trabalhadores e – o que nos interessa – as instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos; 2) essas entidades sempre deverão atender os requisitos previstos em lei; e 3) a imunidade incidirá somente sobre impostos que tenham como hipótese de incidência o patrimônio, a renda e os serviços.

No que toca a parte dos sujeitos de direito, há dissenso na doutrina quanto ao alcance e real significado do termo “instituição”[5]. Mas nos parece que à luz do contexto de complementação de acessibilidade aos direitos a prestações materiais originariamente obrigadas ao Estado, esse conceito sugere abrenger todas as pessoas jurídicas de direito privado que busquem essa finalidade de ofertar em todos os setores sociais a efetividade de diversos direitos previstos de forma exemplificativa no art. 6°, da Constituição Federal.

Destarte, a forma de organização não faz com que uma entidade seja ou deixe de ser considerada “instituição” para fins de concessão de imunidade. O que interessa são os fins perseguidos, que devem ser filantrópicos e complementares ao dever de prestação material do Estado. Por esse raciocínio, podem ser consideradas “instituições”, p. ex. associações, fundações, serviço social autônomo e escolas comunitárias.

Vencida a questão da legitimidade para figurar como beneficiário das imunidades previstas no art. 150, VI, “c” da Constituição Federal, importa perquirir agora acerca dos requisitos que devem se agregar a essas instituições. E aqui, vale logo uma observação:

Esses requisitos devem ser previstos em lei complementar, como se dessume do texto constitucional supra. É que se trata ali de uma norma de eficácia limitada.

Embora essa assertiva seja tecnicamente imperiosa, a doutrina e a jurisprudência são unânimes em reconhecer que o texto constitucional recepcionou o art. 14, do Código Tributário Nacional, e os requisitos ali previstos, como verdadeira “lei complementar no sentido material”. Há autores que afirmam categoricamente: “faz as vezes de tal lei complementar o art. 14 do Código Tributário Nacional”[6]. Outros, em elipse doutrinária que adere a esse entendimento, já partem direto para admitir que “é razoável entender-se que o não ter finalidade lucrativa [expressão prevista na parte final da alínea “c”, do inc. VI, do art. 150 da Constituição] pode traduzir-se no atendimento dos requisitos do art. 14 do Código Tributário Nacional”[7].

Assim, para auferirem a imunidade tributária, as instituições deverão atender aos seguintes requisitos: 1) não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título; 2) aplicarem integralmente, no País, os seus recursos na manutenção dos seus objetivos institucionais; e 3) manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão.

Importante frisar, com MACHADO, que “não ter fins lucrativos não significa, de modo algum, ter receitas limitadas aos custos operacionais. Elas na verdade podem e devem ter sobras financeiras, até para que possam progredir, modernizando e ampliando suas instalações. O que não podem é distribuir lucros. São obrigadas a aplicar todas as suas disponibilidades na manutenção dos seus objetivos institucionais”[8].

Da mesma forma, para efeitos de imunidade tributária, nada impede que os funcionários das instituições sejam remunerados, conquanto não sejam exorbitantes os salários ou incompatíveis com a relevância dos serviços prestados, passando a representar na verdade, de forma oblíqua, uma verdadeira distribuição de lucros.

Noutro ponto, soa no mínimo coerente a exigência do inc. II do art. 14, do CTN, do dever de as instituições aplicarem seus recursos de forma integral no Brasil e na manutenção dos seus objetivos institucionais. Ora, o incentivo da imunidade tributária só se justifica se representar um impulso à prestação de serviços e bens por parte da iniciativa privada a pessoas que sejam credoras sociais do próprio Estado. E se essa finalidade de promoção do bem social à sua população é o desiderato que une interesse público local e interesses privados, não há que se falar em admitir fuga de capital a outros países. Em suma, a finalidade da entidade de interesse social deve visar a implementação dos seus objetivos estatutários no Brasil, tendo como força motora o seu capital que deverá ser aplicado e revestido em prol do seu povo. Como diz BALEEIRO, “os fins – educação, assistência social, orientação política ou religiosa – é que se devem realizar no País, aproveitando a este”[9].

Por derradeiro, apresenta-se como requisito à aquisição da imunidade tributária a necessidade de as instituições interessadas “manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão”. Aqui se trata de uma obrigação acessória da entidade que se configura como dever instrumental tributário, consectário lógico do incentivo do Estado para que o ente privado complemente o seu dever de proporcionar ao cidadão a prestação material de direitos que lhe são assegurados na Constituição.

Esse requisito é operacional, se comparado com os outros previstos no art. 14, do CTN. Isso porque somente com a formalização contábil escorreita das instituições beneficiárias da imunidade, poderá o Fisco aquilatar se a entidade não distribui lucros ou se aplica seus recursos no país.

Quanto à abrangência da imunidade, vale destacar breves considerações acerca da imperiosa necessidade de as “instituições” empregarem seus recursos para alcançar suas “finalidades essenciais”. Com efeito, devem os serviços prestados por essas entidades – sejam assistenciais ou educacionais – ser ligados diretamente a suas finalidades, ou seja, devem ser dirigidos à consecução de seus objetivos institucionais, previstos em seus estatutos[10].

Essa questão foi objeto de embate judicial nos âmbitos do STJ e do STF. A primeira Corte entendeu no caso concreto que em razão de o serviço de estacionamento explorado por entidade de interesse social não comungar com suas finalidades essenciais, deveria ser tributado, não havendo que se falar em imunidade[11]. Já a segunda Corte, arrematou que renda obtida pela instituição de assistência social mediante cobrança de estacionamento de veículos em área interna da entidade, destinada ao custeio das atividades desta, está abrangida pela imunidade[12]. Esse entendimento foi sumulado pelo STF, tendo como pano de fundo a hipótese de alugueres cobrados por entidades de interesse social, cujos valores, embora originários de atividade diversa dos seus fins precípuos, são revestidos em prol de suas finalidades essenciais[13].

Questão de necessário trato é também a identificação dos impostos sobre os quais incidirá a imunidade das instituições educacionais e de interesse social. E nessa busca, é imperioso se voltar no que toca aos respectivos fatos geradores previstos na dicção do art. 150, inc. VI, alínea “c”, da Constituição. Ei-los: “patrimônio, renda ou serviços”.

Dessume-se, então, que o texto constitucional delimitou a abrangência da imunidade à espécies tributárias que tiverem esses fatos geradores. Implica dizer que quanto ao seu patrimônio, as entidades que contarem com os requisitos do art. 14, do CTN, estarão imunes do imposto sobre propriedade predial e territorial urbana (IPTU), sobre propriedade territorial rural (ITR), transmissão Causa mortis ou doação de bens e direitos (ITCD), sobre transmissão Inter vivos de bens imóveis (ITBI) e sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA); quanto à renda, estarão imunes ao imposto sobre renda e proventos de qualquer natureza (IR); e, por fim, quanto aos serviços, estarão imunes aos impostos sobre a circulação de mercadorias e serviços (ICMS), sobre serviços de qualquer natureza (ISSQN), sobre importação (IPI) e sobre produtos industrializados (IPI).

Descendo ao ocaso do estudo proposto, cabe uma indagação: a concessão das imunidades tributárias às entidades educacionais e de interesse social é uma postura ética?

A ética é um conceito deontológico que converge com a filosofia da moral e dos bons costumes, cabendo estabelecer-lhe como premissa conceitual à nossa proposta de enfrentamento a essa indagação, como o dever do homem para com Deus e a Sociedade.

Desse ponto de partida, deflui logo o raciocínio de que, se fazer o bem é implementar o interesse público, serão no mínimo nobres as posturas da iniciativa privada que visarem a consecução dos direitos a prestações materiais previstos na Constituição e que devem ser ofertados a todos pelo Estado, sem qualquer distinção.

Ora, o Estado Democrático de Direito não aboliu o papel de garantidor do Poder Político. Na verdade, concilia o poder-dever do Estado de provedor-Mor dos direitos sociais, mas também imputa à sociedade, ao menos no campo da moral, a sua parcela de responsabilidade na materialização desses direitos. Em vários dispositivos da nossa Carta Magna vê-se o Estado concitar a sociedade a somar seus esforços nesse desiderato. São exemplos: art. 227: “é dever da família, da sociedade e do Estado […]”; art. 225: “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, […] impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo[…]”; art. 204, II: “participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação de políticas e no controle das ações em todos os níveis”.

Quer-se dizer que o Estado, enquanto garantidor de parte da oferta de direitos de segunda geração, o faz também com o incentivo às entidades educacionais e de interesse social que assim o queiram e se estabeleçam com esse fim. Esse impulso revela-se, dentre outras formas, com a instituição de imunidades tributárias e com alocação de recursos públicos para que essas entidades implementem a execução desses direitos de forma complementar. Mas o que não se deve olvidar é que, precipuamente, a promoção desses direitos, é um dever do Estado.

Nessa perspectiva, entende-se que as imunidades tributárias não enfrentam obstáculo no âmbito da ética, porquanto convergem com o fim do interesse público representado no papel complementador das instituições de interesse social e educacionais, que promovem direitos a prestações materiais de obrigação originária do próprio Estado.

 

[1] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. Malheiros. São Paulo: 1998. p. 199. 

[2] CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. Malheiros. São Paulo: 1997. p. 399.

[3] PAES, José Eduardo Sabo. Fundações, Associações e Entidades de Interesse Social: aspectos jurídicos, administrativos, contábeis, trabalhistas e tributários. Brasília Jurídica. Brasília: 2006. p. 700.

[4] “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: […] VI: instituir impostos sobre: […] c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei”

[5] Magistral a lição de Sacha Calmon Navarro Coelho quando afirma que “a palavra instituição não tem a ver com tipos específicos de entes jurídicos, á luz de considerações estritamente formais. […] Instituição é palavra destituída de conceito jurídico-fiscal. Inútil procurá-lo aqui ou alhures, no direito de outros povos. […] O que caracteriza é exatamente a sua função e os fins que exercem e buscam, secundária a forma jurídica de sua organização, que tanto pode ser fundação, associação, etc. O destaque deve ser para a função, os fins.” (O Controle de Constitucionalidade das Leis e do Poder de tributar na Constituição de 1988. Del Rey. Belo Horizonte: 1992. p. 403.)

[6] CARRAZZA, Roque Antônio. Ob. Cit. p. 412.

[7] MACHADO, Hugo de Brito. Ob. Cit. p. 204.

[8] MACHADO, Hugo de Brito. Ob. Cit. p. 205.

[9] BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. Forense. Rio de Janeiro: 1974. p. 187.

[10] PAES, José Eduardo Sabo. Ob. Cit. p. 705.

[11] REsp n° 41.002-9/SP, p. DJ 13.11.95, p. 38641.

[12] RE n° 144.900-4/SP e RE n° 218.503-8/SP.

[13] Súmula 724, do STF: Ainda quando alugado a terceiros, permanece imune ao IPTU o imóvel pertencente a qualquer das entidades referidas pelo art. 150, VI, c, da Constituição, desde que o valor dos aluguéis sejam aplicado nas atividades essenciais de tais entidades.

Uma resposta para As imunidades tributárias às instituições de interesse social e suas implicações éticas: breves anotações a partir de uma perspectiva constitucional garantista

  1. Lohana Richardson Leon disse:

    Considero interessantes as afirmações implícitas nesse contexto.

    Resposta: Obrigado Lohana.
    Seja bem-vinda ao blog. Um abraço.

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